Um partido não é feito só de programa, política, estatutos. É feito também por suas tradições. Tradições de intervenção coletiva nas grandes lutas, nos grandes combates políticos. Mas também dos exemplos individuais de seus quadros e militantes.
Nesse dia 16 de setembro, Dirceu Travesso morreu pela manhã. A seu lado, sua companheira Marta. Assim Didi (para nós), Dirceu (para sua família), se incorporou às tradições do PSTU, da LIT, da CSP-Conlutas e do movimento sindical.
Didi era um dos que Brecht chamava de “imprescindível”. Um daqueles que milita todos os dias, por toda a vida.
Uma figura que dedicou toda a sua vida a um projeto coletivo, quando a maioria absoluta de sua geração buscou uma saída individual. A ideologia individualista imposta pelo capital leva a que as pessoas dediquem sua vida a conseguir um cargo, um apartamento, um automóvel.
A maioria acha que um militante como Didi é uma pessoa estranha. Como dedicar o melhor de seu tempo, de seus esforços a uma luta coletiva? No entanto, esses imprescindíveis conseguem com suas vidas não só feitos coletivos, mas também um elemento subjetivo, individual, inestimável. Conseguem dar um sentido para suas vidas, por ter vivido a grande luta por mudar o mundo.
Na saudação gravada por Trotsky para a conferência de fundação da IV Internacional, ele dizia:
“Sim, nosso partido nos toma por inteiro. Mas em compensação no dá a maior das felicidades, a consciência de participar na construção de um futuro melhor, de levar sobre nossos ombros uma partícula do destino da humanidade e de não viver em vão.”
Quantos que dedicam suas vidas a comprar coisas, conseguir cargos, podem olhar para trás ao se aproximar da morte e sentir orgulho do que fizeram? Didi pôde, e isso lha dava a serenidade e a coragem com que encarou a sentença de morte do câncer. Ajudou a construir a CSP-Conlutas, o PSTU, a LIT. Ao ser parte dessa luta coletiva, tinha também a consciência de que não viveu em vão.
Ele começou a militar em 1977. Foi líder estudantil nas mobilizações do final da ditadura, sendo enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Trabalhou em fábrica em Volta Redonda, centro de resistência proletária. Foi dirigente das grandes greves bancárias da década de 80. Conseguiu nesses anos a admiração de gerações e gerações de lutadores, e o respeito de seus adversários. Não foi por acaso que o ato de despedida foi na quadra do Sindicato dos Bancários de São Paulo, com a presença do Comando de Greve Nacional dos Bancários e do Comando de Greve da USP que pararam suas reuniões para se despedirem de Didi.
No ato, mais de 1000 pessoas presentes. A maioria absoluta composta por seus camaradas do PSTU e da CSP-Conlutas. Mas também com a presença de praticamente todos os partidos da esquerda brasileira, como o PT, PSOL, PCB e PCdoB, além da CUT, Intersindical e CGTB.
Didi foi um internacionalista concreto. Foi parte central de suas atividades em particular nos últimos anos. Esteve na Praça Tahrir do Egito, na Palestina ocupada. Foi o idealizador e um dos principais organizadores do Encontro do Sindicalismo Alternativo que reuniu dezenas de organizações sindicais dos estados europeus, da América, África, Oriente Médio e Ásia de cerca de 30 países em março de 2013 na França.
Não é por acaso que em sua despedida foram lidas mensagens emocionadas de muitos países do mundo. As mais emocionantes vieram da África do Sul e Espanha.
Nesse dia 17, na cerimônia do Crematório de Vila Alpina, o caixão estava coberto com as bandeiras de suas paixões: o PSTU, a CSP-Conlutas e o Corinthians. Seu pai falou que podia se saber quanto uma pessoa amou pelo número de amigos que tinha. “E o ato de ontem, meu filho, mostrou que você amou demais”.
Há quase cinco anos, Didi ia falar em um dos encontros nacionais que levou depois à construção da CSP-Conlutas. Cambaleou, e não pôde seguir. Dois dias depois, teve de fazer uma cirurgia para extrair um tumor que lhe obstruía os intestinos.
Era o início de uma dura luta contra o câncer. Mais um exemplo.
Em nenhum momento, seus camaradas ouviram dele uma queixa, uma lamentação. Para os que se surpreendiam com seu corpo cada vez mais magro, abria um enorme sorriso. Todos nós temos problemas na vida. Uns mais, outros menos. Mas quantos encarariam esse tipo de problema com a alegria de viver e a força desse camarada? Quantos enfrentariam quatro cirurgias e três quimioterapias sem se render à autopiedade, sem baixar a guarda?
Na tarde da véspera do Encontro de Paris, Didi teve uma violenta crise de dor. Foi levado às pressas para o hospital, onde o encontrei em uma maca de pronto socorro, com um sorriso irônico nos lábios. Durante a noite, o médico francês não gostou nada do que viu na tomografia do abdômen. Como não conhecia o caso, se assustou. Deu a Didi duas possibilidades: ou se internar lá mesmo para se tratar ou sair dali com uma dose pesadíssima de analgésicos para se tratar depois no Brasil.
Didi não pensou duas vezes. Recebeu os remédios e saiu. Mas não estava preocupado em voltar ao Brasil, mas com o Encontro do dia seguinte. Falou na abertura do Encontro e ninguém soube do drama da noite anterior além dos que lá estiveram. O sorriso aberto de Didi foi o que as centenas de pessoas de todas as partes do mundo viram.
Essa postura ele levou até o fim. Já em seus últimos dias disse a mim e a sua companheira Marta que no dia de sua morte não queria choro, mas festa.
Impossível evitar o choro, Didi. Mas a festa que ele queria- o ato político de celebração da vida e da luta- foi o que ocorreu nesse dia 16 na quadra do Sindicato dos Bancários. Mais de mil homens e mulheres, novos e velhos militantes choraram e gritaram: “camarada Didi, presente”.
Adeus meu camarada e amigo.